Como entender o papel do Estado em meio à crise dos presídios

 

Defensores de direitos humanos e um professor de direito penal respondem a questões levantadas a partir dos massacres de Manaus e Boa Vista – Os massacres ocorridos em prisões de Manaus (1º) e de Boa Vista (6) no início de 2017 levaram a reações diversas na sociedade.

 

De um lado, emergiram sentimentos de solidariedade com as famílias das vítimas e cobranças por um sistema carcerário que respeite a dignidade das pessoas que cumprem as chamadas "penas privativas de liberdade" no Brasil.

 

De outro, houve comemoração pelas mortes. O caso mais emblemático foi o do agora ex-secretário nacional de Juventude do governo Michel Temer, Bruno Júlio (PMDB), obrigado a pedir demissão depois de ter dito, na sexta-feira (6), que "tinha era que matar mais [presos]".

 

A linha que divide essas duas reações passa pela compreensão do papel do Estado e do que significa exatamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em 1948, codificou os padrões mínimos de respeito à vida e à dignidade.

 

Tomando como base algumas das reações de aprovação aos massacres, o Nexo Jornal formulou cinco perguntas para cinco especialistas que acompanham os temas de direito penal e de direitos humanos no Brasil.

O que é uma pena de prisão?

Edson Knippel

Professor de direito penal

"Tradicionalmente no direito penal, a pena deve punir e prevenir crimes. A vertente da prevenção especial do crime é o que traz consigo também a ideia de `ressocialização’ do preso. A ressocialização deve ser mínima, evitando que o preso volte a praticar crime. Esse conceito é perigoso, pois o que significa `ressocializar’ uma pessoa numa sociedade tão diversa? Qual o modelo ao qual ele vai se `ressocializar’, do ponto de vista antropológico, religioso, social mesmo? O melhor exemplo disso talvez esteja talvez no filme `Laranja Mecânica’ [ficção na qual o personagem principal é submetido a uma reprogramação mental].

`Se o Estado não dá as condições, como pode pretender ressocializar minimamente o preso?`

Porém, podemos falar numa ressocialização mínima, que visa a evitar que o preso volte a praticar crimes. Para que isso aconteça, o Estado deve dar as condições de instalação, educação e de trabalho e de saúde, para que ele saia como uma pessoa melhor. Se o Estado não dá essas condições, como pode pretender ressocializar minimamente esse preso? Já na vertente da punição, essa punição tem de estar restrita ao que diz a Constituição: estão proibidas as práticas cruéis, desumanas e degradantes, para que a pena fique circunscrita aos termos da lei. Sobretudo nesse contexto de crise, é importante que o Estado invista em penas alternativas, deixando a pena privativa de liberdade apenas para os crimes mais graves. Do contrário, estaremos construindo mais e mais presídios, eternamente."

Por que o Estado indeniza a família de um preso morto em rebelião carcerária, mas não indeniza o cidadão que morre nas mãos do crime?

Juana Kweitel

Diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humanos

"O Estado deve indenizar quem morre sob sua custódia. Em caso de crimes comuns, a indenização deve vir do autor do crime, e o papel prioritário do Estado é garantir uma investigação eficaz e uma justiça que atue em tempo razoável. Tendo o monopólio do uso da força, o Estado também tem a obrigação de criar e implementar uma política de segurança pública eficaz.

`A vítima de um crime poderia requerer indenização do Estado. Nos tribunais brasileiros, porém, essa tese não tem prevalecido`

Em tese, alguém que for vítima de um crime poderia requerer uma indenização do Estado alegando uma omissão na política de segurança pública, da mesma forma que as mulheres vítimas de zika estão questionando a omissão estatal na prevenção da doença. Haverá um enorme desafio para provar essa omissão do Estado e suas consequências, mas não é uma tese impossível juridicamente. Nos tribunais brasileiros, porém, essa tese não tem prevalecido até hoje."

Por que o governo gasta tanto dinheiro mantendo presos que não contribuem com a sociedade?

Ivan Marques

Diretor-executivo do Instituto Sou da Paz

"Um dos grandes avanços da civilização humana foi a troca do direito de vingança pessoal – olho por olho, dente por dente, onde só o mais forte consegue impor consequência pelo dano sofrido – pelo monopólio da força pelo Estado, que é uma instituição movida pela promoção da justiça e da racionalidade. Isso significa que o valor do preso no Brasil – ou em qualquer lugar do mundo – não deve ser medido por quanto ele custa ao Estado, mas pela capacidade do Estado promover justiça, tanto em relação aos criminosos quanto às vítimas.

`Alternativa ao monopólio da força pelo Estado é o retorno à barbárie`

O grande problema é que, no nosso país, há distorções nesse sistema, que impedem que o ciclo de justiça aconteça, o que gera na sociedade a sensação de impunidade: o crime na maioria das vezes compensa, e o criminoso quando é condenado pelo sistema de justiça criminal é um `custo inútil’, pois o sistema prisional, em vez de ressocializar, só abastece o crime. É por isso que corrigir essas distorções é tão necessário, até porque a outra opção é o retorno à barbárie."

Por que o Estado é culpado se os presos decidem se matar entre si?

Guilherme Pontes

Advogado e pesquisador da ONG de direitos humanos Justiça Global na área de Violência Institucional e Segurança Pública

"Pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos prisionais estão sob a custódia do Estado, tornando-o responsável pela preservação de todos os direitos que não foram restritos ou suspensos, nos termos do artigo 3° da Lei de Execução Penal, notadamente o direito à vida.

`Superlotação e condições degradantes fazem do sistema bomba-relógio, cuja explosão pode acontecer a qualquer momento`

Para além disso, também é dever do Estado zelar pela proibição constitucional às penas cruéis (CF/88, art. 5°, XVLII, "e"). Ademais, no tocante às chamadas facções criminosas, é importante que seja destacada a responsabilidade do Estado, haja vista que sua omissão e ineficiência na administração prisional tem relação direta com o surgimento, fortalecimento e expansão dessas organizações no território nacional.

A política de superencarceramento implementada pelo Estado brasileiro, com a consequente superlotação das unidades prisionais, somada às condições degradantes a que estão submetidas as pessoas privadas de liberdade no Brasil, faz do sistema carcerário brasileiro uma verdadeira bomba-relógio, cujas explosões podem acontecer a qualquer momento, como recentemente em Manaus e Boa Vista."

Por que organizações de direitos humanos falam sobre a morte de presos, mas não falam sobre as mortes de policiais?

Cézar Munõz

Pesquisador sênior da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, especialista em condições prisionais e em abusos policiais

"Toda pessoa tem direitos fundamentais, sejam presos ou policiais, e as organizações de direitos humanos devem defender todos eles. Algumas pessoas têm aplaudido a morte de presos. Essa visão é profundamente equivocada.

`Organização também denuncia vulnerabilidade dos policiais, precárias condições de trabalho e códigos disciplinares que violam direitos`

Obviamente, o assassinato de um detento é uma violação do direito mais básico, o direito à vida, e uma falha do Estado, que tem a obrigação de proteger todas as pessoas sob sua custódia. Mas esse apoio a mortes de pessoas presas é também é uma visão que ignora o que os massacres realmente significam: são uma demonstração do poder das facções criminosas e da negligência dos sucessivos governos, de esquerda e de direita, de manter o controle dentro das prisões.

O poder das facções é uma ameaça direta à vida da nossa polícia. Por exemplo, traficantes mataram em 2014 a policial militar Alda Castilho, de 27 anos, no Rio de Janeiro. A mãe dela me disse que "sua morte foi em vão". Ela lutava por receber a pensão do Estado pela morte da filha. A Human Rights Watch tem denunciado a vulnerabilidade dos policiais militares no Brasil, as precárias condições de trabalho, e os códigos disciplinares que violam direitos fundamentais.

Por João Paulo Charleaux / Nexo Jornal